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1 Caderno de Formação nº 56 “ SubSídioS para eStudo da conjuntura 2022” 2 ExpEdiEntE O Caderno de Formação nº 56 - “ Subsídios para estudo da conjuntura 2022, é uma publicação do Setor de Formação do MST. Diagramação: Secretaria Nacional Secretaria Nacional / Setor de Formação (11) 2131-0850 Alameda Barão de Limeira 1232 - Campos Elísios 01202-002 - São Paulo - SP secgeral1@mst.org.br São Paulo — Janeiro 2022 3 Sumário 1. Tópicos da conjuntura internacional — Vijay Prashad...........................................................................................05 2. Elementos para una Análisis de Coyuntura politica de las Americas - Alba Movimientos ...................................................11 3. Colapso socioambiental ou mudança de civilização. O decênio decisivo — Luiz Marques ...........................................................................................21 4. Ecossocialismo — Michael Löwy ............................................................................................41 5. Medidas para defender a vida no planeta terra e melhorar as condições de vida do povo ............................................53 6. Notas de conjuntura econômica — Guido Mantega ......................................................................................57 7. Análise da conjuntura política — Miguel Enrique Stedile ........................................................................61 8. Agronegócio: o modelo do capital para controlar os bens da natureza e a agriculltura brasileira — João Pedro Stedile ..............................................................................67 9. Anexo: concentração dos 10 maiores grupos empresariais brasileiros - 2020. Revista Valor Econômico ..................................79 4 5 Tópicos da conjunTura inTernacional* — Vijay Prashad — 1. * Instituto Tricontinental de Pesquisa Social / 30 de dezembro de 2021 6 i- agridoce é a passagem desTe ano Houve algumas vitórias imensas e algumas derrotas ca- tastróficas, a mais terrível sendo o fracasso dos países do Norte Global em adotar uma atitude democrática para enfrentar a pan- demia de Covid-19 e criar acesso equitativo a recursos essenciais, de equipamentos médicos salvadores a vacinas. Tragicamente, ao final desta pandemia, teremos aprendido o alfabeto grego das variantes nomeadas após suas letras (delta, omicron), que conti- nuam a surgir. Cuba lidera a lista das maiores taxas de vacinação do mundo, usando seus imunizantes nacionais para proteger sua população e também a de outros países – da Venezuela ao Viet- nã -, dando continuidade a uma longa história de solidariedade na área da saúde. Os países com as menores taxas de vacinação – atualmente liderados por Burundi, República Democrática do Congo, Haiti, Sudão do Sul, Chade e Iêmen – estão entre os mais pobres do mundo, dependem de ajuda externa, pois seus recur- sos são essencialmente roubados, ao serem adquiridos a preços absurdamente baixos por empresas multinacionais. Com apenas 0,04% dos 12 milhões de habitantes do Burundi vacinados até 15 de dezembro de 2021, se seguir com essa taxa atual de vacinação, o país alcançaria apenas 70% de cobertura em janeiro de 2111. Em maio de 2021, Tedros Adhanom Ghebreyesus, chefe da Organização Mundial da Saúde, disse que “o mundo está em um apartheid vacinal”. Poucas coisas mudaram desde então. No final de novembro, a co-diretora de entrega de vacinas da União Africana, Ayoade Alakija, disse sobre o surgimento da ômicron na África Austral: “o que está acontecendo agora é inevitável. É o resultado do fracasso mundial em vacinar de maneira equitativa, urgente e rápida. É o resultado da acumulação [de vacinas] por países de alta renda em todo o mundo e, francamente, é inacei- tável”. Em meados de dezembro, Ghebreyesus nomeou Alakija como Enviada Especial da OMS para o Acelerador de Acesso a Ferramentas para a Covid-19. Sua tarefa não é fácil, e seu objetivo só será alcançado se, como ela disse, “uma vida em Mumbai im- portar tanto quanto em Bruxelas, se uma vida em São Paulo for 7 tão importante quanto uma vida em Genebra, e se uma vida em Harare for tão importante quanto em Washington DC”. O apartheid vacinal é parte de um problema mais amplo, o apartheid sanitário, um dos quatro apartheids de nosso tem- po, os outros sendo o alimentar, o financeiro e o educacional. Um novo relatório da Organização das Nações Unidas para Ali- mentação e Agricultura (FAO) afirma que a população de pesso- as subnutridas na África aumentou em 89,1 milhões desde 2014, chegando a 281,6 milhões em 2020. Vale a pena considerar a per- gunta de Alakija sobre a humanidade, sobre o valor atribuído a diferentes seres humanos: pode uma vida em Harare ser tão va- lorizada quanto uma vida em Washington? Podemos nós, como povos, superar esses apartheids e resolver os problemas elemen- tares enfrentados pelas pessoas de nosso planeta e acabar com as formas bárbaras com que o atual sistema econômico e político tortura a humanidade e a natureza? Uma pergunta como essa soa ingênua para aqueles que se esqueceram do que significa acreditar em algo – se não na própria ideia de humanidade, pelo menos na Carta das Nações Unidas (1945) e na Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas (1948). A Declaração nos exorta, como povo, a nos com- prometermos em defender a “dignidade inerente” uns dos ou- tros, um padrão que entrou em colapso desde que os chefes de governo assinaram o texto final. Apesar desses apartheids, vale a pena destacar alguns avanços da humanidade: 1. O povo chinês erradicou a pobreza extrema, com quase 100 milhões de pessoas saindo da miséria absoluta nos últimos oito anos. Nosso primeiro estudo da série “Estudos sobre o socialis- mo em contrução”, intitulada Servir ao povo: a erradicação da pobreza extrema na China, detalha como esse feito notável foi alcançado. 2. Os agricultores indianos lutaram bravamente pela revogação de três leis que ameaçavam uberizar suas condições de traba- lho e – após um ano de luta – eles venceram. Essa é a vitória trabalhista mais significativa em muitos anos. Nosso dossiê de junho, A revolta dos agricultores na Índia, catalogou a luta pela terra na Índia e a militância dos agricultores na última década. 8 3. Governos de esquerda chegaram ao poder na Bolívia, Chile e Honduras, derrubando uma história de golpes e mudanças de regime nesses países que vão de 1973 (Chile) a 2009 (Hondu- ras) a 2019 (Bolívia). Um ano atrás, nosso dossiê de janeiro, Crepúsculo, abordou a erosão do controle dos Estados Unidos sobre os assuntos globais e o surgimento de um mundo multi- polar. O fracasso dos Estados Unidos em atingir seus objetivos nesses países e em derrubar a Revolução Cubana e o proces- so revolucionário venezuelano por meio de guerras híbridas é um sinal de grande possibilidade para os povos do hemisfério americano. As tendências mostram que em 2022 Lula deverá derrotar quem for o candidato da direita no Brasil, encerrando a atrocidade do governo de Jair Bolsonaro. Nosso dossiê de maio, Os desafios da esquerda no Brasil, é um bom lugar para ler sobre os dilemas políticos no maior país da América Latina. 4. Uma crescente onda de insatisfação no continente africano contra a crescente presença militar dos Estados Unidos e da França encontrou expressão na cidade de Kaya, oeste de Burki- na Faso. Quando um comboio militar francês passou perto da cidade em novembro, uma multidão de manifestantes o dete- ve. Os franceses lançaram um drone de vigilância para monito- rar a multidão. Aliou Sawadogo (13 anos) abateu o drone com seu estilingue, “um Burkinabé David contra o Golias francês”, escreveu Jeune Afrique. Nosso dossiê de julho, Defendendo nossa soberania: bases militares dos EUA na África e o futuro da unidade africana, foi co-publicado com o Movimento Socialista do Grupo de Pesquisade Gana e acompanha o crescimento da presença militar ocidental no continente. 5. Vimos greves de trabalhadoras de cuidados de todos os tipos em todo o mundo, desde profissionais de saúde a trabalhado- ras domésticas. Essas trabalhadoras foram duramente atingi- das pela crueldade do neoliberalismo e pelo que chamamos de CoronaChoque. Mas essas trabalhadoras se recusaram a se acovardar, recusaram-se a perder sua dignidade. Nosso dossiê de março, Desatando a crise: o trabalho de cuidado em tempos de coronavírus, fornece um mapa das pressões que pesam so- bre esses trabalhadores e abre uma janela para suas lutas. Claro, esta não é uma lista exaustiva. São apenas algumas das referências do progresso. Nem todo avanço é bem definido. 9 Depois de vinte anos, os Estados Unidos foram forçados a final- mente se retirar do Afeganistão, pois perderam a guerra para o Taleban. Nenhum dos objetivos dos Estados Unidos para a guerra parece ter sido alcançado e, no entanto, continua a ameaçar de fome este país de quase 39 milhões de habitantes. Os Estados Unidos impediram o Afeganistão de acessar seus 9,5 bilhões em reservas externas que estão em bancos estadunidenses e impe- diram o governo afegão de assumir seu lugar no sistema da ONU. Como consequência do colapso da ajuda externa, que represen- tou 43% do PIB do Afeganistão no ano passado, o Programa de De- senvolvimento da ONU calcula que o PIB do país cairá 20% neste ano e 30% nos anos seguintes. Enquanto isso, o relatório da ONU estima que até 2022, a renda per capita do país pode cair para quase metade dos níveis de 2012. Estima-se que 97% da população ficará abaixo da linha da pobreza, sendo a fome em massa uma possibilidade real neste inverno. Uma vida no Corredor Wakhan não é tão valorizada quanto uma vida em Londres. A “dignidade inerente” do ser humano – como afirma a Declaração das Nações Unidas – não é mantida. Esse não é apenas um assunto do Afeganistão. O recém- -lançado World Inequality Report 2022 mostra que a metade mais pobre da população mundial possuía apenas 2% da propriedade privada total (negócios e ativos financeiros, depósitos, imóveis), enquanto os 10% mais ricos possuíam 76% do total da propriedade privada. A desigualdade de gênero molda esses números, uma vez que as mulheres recebiam apenas 35% da renda do trabalho em comparação com os homens que recebiam 65% (uma ligeira melhora em relação aos números de 1990, quando a participação das mulheres era de 31%). Essa desigualdade é outra forma de me- dir a dignidade diferencial conferida às pessoas de acordo com a classe social e com as hierarquias de gênero e nacionalidade. Para terminar... Em 1959, o poeta comunista iraniano Siavash Kasra’i escre- veu uma de suas elegias, Arash-e Kamangir (Arash, o Arqueiro). Usando a mitologia popular da antiga batalha travada pelo herói- co arqueiro Arash para libertar seu país, Kasra’i retrata as lutas anti-imperialistas de seu tempo. Mas o poema não é apenas sobre lutas, pois também nos faz pensar sobre as possibilidades: 10 Eu te disse que a vida é linda. Dito e não dito, há muito aqui. O céu claro; O sol dourado; Os jardins de flores; As planícies sem limites; As flores despontando na neve; O suave balanço dos peixes dançando no cristal de água; O cheiro de poeira varrida pela chuva na encosta da montanha; O sono dos campos de trigo na primavera ao luar; Para vir, para ir, para correr; Para Amar; Para lamentar pela humanidade; E para se deleitar de braços dados com as alegrias da multidão. 11 elemenTos para una análisis de conyunTura políTica de las américas* — Alba MOVIMIENTOS — 2. * Construcción colectiva de los dirigentes de Alba Movimientos, 4-5 deciembre 2021 12 i-¿cuáles son facTores comunes que expresan las esTraTegias de dominación y procesos de lucha en la región? 1. Estamos en momento de crisis múltiple e interrelacionada del capitalismo con expresiones financieras, ambientales. Expresa una crisis civilizatoria en un contexto de transición geopolítica donde aparecen nuevos polos internacionales. La pandemia es una expresión más de la crisis y al mismo tiempo, causa de ace- leración de algunas tendencias. 2. La disputa no se da ya en el plano bélico tradicional. Hay una generalización de guerra hibrida, con la utilización de los me- dios y redes sociales, bloqueos y guerras económicas, estrate- gias diplomáticas, manejo de la virtualidad, uso de las indus- trias culturales, procesos de judicialización y criminalización a líderes políticos y sociales. 3. Se impone un nuevo paradigma tecnológico, que implica el co- mercio electrónico, el teletrabajo que avanza sobre los dere- chos de la clase trabajadora, la tecnología mediando todas las relaciones. 4. La crisis ecológica se ha acrecentado ante gestiones de gobier- nos que no buscan alternativas en nuevas formas de produc- ción, reproducción y consumo el sostenimiento de la quema y la destrucción de bosques y el desenfreno en la búsqueda de recursos en los países periféricos. 5. De acuerdo a CEPAL doscientos millones de personas viven en la pobreza. Las condiciones de crisis recaen mucho más sobre mujeres y jóvenes sometidos a mayor explotación. 6. Fragmentación de la hegemonía norteamericana. Ante esto, EEUU se propone recrudecer su dominación sobre América Latina y el Caribe. Sus instituciones no generaron vacunas ni pudieron responder a los problemas intensificados a partir de la pandemia. Trata de monopolizar mercados tratando de que China no le dispute el control, y de controlar los países a partir de dos vías: una vía dinámica liderada por sectores neofascis- tas articulados en la región a partir de la figura de Trump y una vía de concertación, al estilo de la cooptación cultural y diplo- 13 mática. La intención es aislar procesos revolucionarios, sobre todo con discursos sobre derechos humanos y democracia. 7. El imperialismo se propone especialmente el aislamiento de Cuba, Venezuela y Nicaragua a través de discursos anclados en derechos humanos, democracia. En esta guerra básicamente se intenta bloquear los procesos alternativos en un momento en que Cuba responde con solidaridad y capacidad para enfren- tar a la pandemia. El sistema no tiene una alternativa creíble, sus modelos están en crisis. Hay una crisis de legitimidad de la OEA . 8. En este momento de crisis, también hay un aumento de la con- flictividad social y la confrontación. Protestas, movilizaciones en todo el mundo en la medida en que se concentra la riqueza excluyendo del esquema de dominación a gran parte de sec- tores de clases trabajadoras. Aumenta la polarización porque sectores de grupos dominantes aprovechan el descontento para ubicar discursos de odio, xenófobos, racistas. 9. Se sostienen movilizaciones populares en Colombia, Perú. Hay procesos de lucha en Haití a pesar de todos los intentos de con- trolar la lucha popular en ese país y otros procesos caribeños que vienen en fuertes resistencias aun la complejidad de tener al imperio tan cerca. Hay procesos de resistencia y movilizacio- nes en Bolivia para defender el proceso asediado. 10. Los procesos electorales pueden abrir posibilidades de inte- gración y enfrentamiento al imperialismo norteamericano, nos abren posibilidades de reconfiguración en el campo de fuerzas regional. En este sentido son importantes la victoria sandinista en Nicaragua, los procesos constituyentes en Chile aun espe- rando definición en elecciones. Ha sido importante la victoria de Pedro Castillo en Perú aun con el asedio al gobierno, la vic- toria en Venezuela del chavismo en las elecciones regionales, la victoria de Xiomara Castro en Honduras como una victoria del pueblo y en Argentina el freno al avance de la derecha, porque se gana tiempo para disputar con un gobierno de coalición. Vie- nen elecciones en Costa Rica, en Brasil. 14 ii-siTuaciones específicas de algunos países relaTadas por los dirigenTes de alBa 1. EEUU EEUU intensificarála ofensiva contra proyectos popula- res que van ganando espacios. Sin embargo, existen condiciones dentro del país que favorecen un proceso de luchas colectivas con debates de un polo antimperialista y sensibilidad socialista en algunos sectores. La población comprende y toma conciencia de la crisis como resultado del capitalismo y de la reversión de derechos ganados en luchas históricas tras constantes ataques a la clase trabajadora. La administración de Biden no ha podido resolver los problemas de la población en EEUU. Ni siquiera la po- lítica de acaparamiento de vacunas ha impedido que la COVID sea la tercera causa de muerte en el país. Hay sectores específicos que van a incrementar las luchas en los próximos meses en el país. Millones de personas informan que no han tenido para comer ni para realizar los pagos. Crecen luchas por el derecho a la alimentación y las luchas por el derecho al aborto y los derechos a las mujeres. Es importante que haya un espacio para poder fortalecer y ampliar el polo antiimperialista dentro de los EEUU, fortalecer el trabajo con los jóvenes y las luchas internacionalistas, seguir dando la batalla en el terreno ideológico, fortalecer los procesos de formación política dentro del territorio y contribuir con los procesos en el continente y la Asamblea Internacional de los Pue- blos para seguir avanzando y conectando la clase trabajadora de los EEUU con el resto del mundo. 2. BRASIL El gobierno de Bolsonaro ha agravado la crisis económica en el país, dejando sin trabajo a más de 15 millones de trabaja- dores y trabajadoras. La nefasta política neoliberal adoptada por Bolsonaro garantiza ganancias a la burguesía brasileña al tiem- po que agrava la crisis económica y humanitaria que enfrenta la mayoría de los trabajadores. El gobierno de Bolsonaro boicoteó las políticas de control de la pandemia, distribuyó medicamentos ineficaces y retrasó la adquisición de vacunas, en una clara políti- ca de exterminio. Más de 614.000 brasileños perdieron la vida. 15 El gobierno de Bolsonaro y sus aliados aprovecharon para perseguir una agenda para asegurar el avance del capital con el avance de contrarreformas, privatizaciones, condonación de deudas para grandes empresas y millonarios. incentivos para los bancos privados. Hay una política contra los derechos y las posibilidades de vida digna de los trabajadores. La gestión de la pandemia fue una clara política de exterminio para el pueblo bra- sileño. Ejemplos son los Incentivos para el banco privado y los empresarios, la concentración de tierras, el aumento de precios de los servicios públicos y los alimentos, la electricidad, el gas, la gasolina. La destrucción de las políticas para combatir la pobreza profundizó el panorama del hambre en las familias, especialmen- te en los hogares encabezados por mujeres negras. Las mujeres son las más afectadas por el desempleo, agobiadas por el cuida- do de los niños, los ancianos y los enfermos. La suspensión de programas dirigidos a pueblos rurales, forestales y acuáticos es una muestra más de su alianza con la agroindustria, que agrava aún más el escenario de inseguridad alimentaria, destrucción de la naturaleza y entrega de nuestra soberanía. Los movimientos sociales en Brasil están reaccionando. El año pasado hubo movilizaciones en las calles de las principales ciudades del país. El capítulo Brasil está presente. Sigue la lucha que exige Fuera Bolsonaro, ya que el juicio político es una necesi- dad urgente. Vamos caminos a elecciones de 2022. 3.PERÚ Los movimientos populares dieron su respaldo a la pre- sidencia de Pedro Castillo respaldaron que no logra un ejercicio contundente. Se analiza la falta de formación del liderazgo de Castillo y la contundencia de la derecha que arremete en un difícil momento donde hay una solicitud de vacancia. Se reconoce que es una oportunidad que haya un gobier- no de izquierda, pero al mismo tiempo la fragilidad de Pedro Cas- tillo es visible, y siendo un rondero, no tiene las bases ideológicas de las organizaciones populares dada su raíz y pertenencia do- cente. No es un cuadro de las organizaciones populares. El movi- miento popular está en el centro de un debate sobre si sostiene o no el respaldo a Pedro Castillo dado el hecho de que hay sectores 16 de la izquierda que no se sienten representados por el presidente y creen que no cumple con las expectativas del momento. Las rondas campesinas, la mayor organización del país, lle- gó a su sexto congreso, con cambio de la máxima autoridad de las rondas, en 21 de 24 regiones. De cara a la coyuntura, las ron- das enfrentan un peligroso paralelismo a partir de la victoria de Castillo por la aparición de sujetos diversos con supuesta identi- dad rondera, que nacen de un movimiento que avanza en sentido contrario. Se trata de neutralizar la historia de resistencia de las Rondas campesinas que se define como un movimiento social sin cooptación política. La derecha peruana es muy fuerte y expresa su racismo. Es complicado porque por un lado da muestras de consideración a los movimientos que lo eligieron, pero también da concesiones a una derecha que no lo quiere ver en el poder. 4. VENEZUELA La crisis del capitalismo tiene sus particularidades en Ve- nezuela debido al bloqueo económico, la pandemia y las contra- dicciones internas del propio proceso. Estas tres variables se ten- sionan en medio de la situación del país. El proceso electoral para la revolución bolivariana repre- senta uno de los escenarios en los que la revolución disputa po- der. Hay que ver esos resultados desde una visión objetiva, sin triunfalismos. Si bien es cierto que hoy en día, la revolución tiene una mayoría electoral, se han ganado 20 gobernaciones, hay que dar una lectura de esa situación con una visión sobre una derecha más moderada que apuesta por mecanismos para disputarle el poder al proceso revolucionario y analizar cuantas personas sa- lieron a votar por el chavismo, una derecha moderada que recon- figura rostros, y gana terreno a la derecha más rancia. Hay que seguir trabajando en la superación de las propias contradicciones internas y profundizar la Revolución bolivariana. Los sectores de izquierda deben actualizarse y profundizar en las cuestiones que impactan en la economía de la clase trabajadora y superar la lógica del capital. Es una tarea urgente realizar una re- volución económica y la construcción del consenso de las mayorí- as para una nueva hegemonía. 17 5. CARIBE / HAITÍ El Caribe, dada su matriz económica, juega un papel im- portante en la acumulación global y la disputa hegemónica. Se asiste a la ferocidad del imperialismo norteamericano que quiere controlar la región, por eso es todo el esfuerzo de destruir la re- volución cubana y venezolana. El covid fue una coyuntura devastadora para la clase tra- bajadora, aumento de hambre, desempleo, desplome de algunos sectores como el turismo. Los sectores dominantes se aprovecha- ron de la crisis para empujar ofensivas contra los trabajadores esti- mulando la privatización. Muchos países estamos en recesión eco- nómica y aumento de la deuda con los organismos multilaterales. En Haití hay una crisis política muy grave que deja ver las conexiones que existen en un plan de desestabilización, desde la privatización de las fuerzas de seguridad al servicio de trasnacio- nales y los planes de los servicios secretos de EEUU Se duplicó la cantidad de gente con hambre, el problema del desempleo se pro- fundizó en una situación de dependencia creciente desde EEUU y República Dominicana. La crisis migratoria también evidenció la naturaleza de la dependencia e intervención imperialista. EEUU intenta sostener un supuesto proyecto de continui- dad después del asesinato de Jovenel Moise. Frente a eso, los sectores progresistas están en un largo proceso de cuatro años de movilización con la intención de der- rocar el gobierno. Hay un importante proceso de concertación políticamuy amplio, el Acuerdo de Montana que tiene el apoyo de más de 700 entidades políticas y sociales con fuerte respaldo de organizaciones de izquierda. Se lucha contra la continuidad del proyecto de la oligarquía haitiana y responder en lo inmediato a consecuencias del terremoto de agosto y la crisis migratoria. ALBA movimientos en Haití juega un papel de coordinación im- portante en este proceso. Se proyecta la Asamblea para el 14 de enero. Las fuerzas democráticas en Haití están en procesos de lucha cotidiana frente a una crisis devastadora. También es importante señalar las rebeldías significativas en países como Guadalupe, Martinica, y Guyana. Las rebeldías de Guadalupe y Martinica cuestionan la matriz colonial. Por prime- ra vez Francia tuvo que reconocer que el estatus colonial sobre Martinica no puede sostenerse. El movimiento en Puerto Rico 18 también se fortalece, se han retomado agendas como el clima, la deuda, y luchas todos los días contra la dominación colonial. La fuerza de la movilización popular exige cambios políti- cos, cambios concretos en las correlaciones de fuerzas. El capí- tulo de ALBA ha podido realizar cinco reuniones y avanza en un proceso de discusión de la propuesta política de ALBA y propone tres aportes para fortalecer los movimientos en este escenario: Luchar contra la dispersión de los movimientos sociales; repo- litizar las luchas del campo popular; e introducir en la agenda de todas las organizaciones la solidaridad internacionalista su- brayando la solidaridad con Cuba y Venezuela. Se reconoce es- pecialmente el papel de los médicos cubanos en la solidaridad internacionalista. Lo que ocurre muestra la lucha entre los intentos de do- minación total y las rebeldías múltiples. En ese escenario es im- portante mayor intercambio entre las luchas del continente y las luchas del Caribe. III-Desafíos y rutas para responder en este tiempo. Reacciones desde las regiones. 1.Las agendas y luchas urgentes de carácter nacional que incluyen importantes procesos de cambio en algunos países resultan en distintos niveles de movilización y en la dificultad de colocar la visión del proceso de ALBA en las organizaciones. Es urgente fortalecer el proceso de ALBA en las organizaciones de base, asumir la lucha internacionalista desde abajo 2.Se reconoce la importancia de trabajar la experiencia común de los procesos constituyentes y los debates sobre democracia y poder popular, en la región de Andes, que pudiera ser un eje concreto para intencionar la articulación. 3.Dar la disputa digital y nuevas tecnologías. Sabemos cómo dar la batalla en la calle, podemos disputar los Estados, tenemos experiencia en defendernos del enemigo en términos de de- rechos humanos, pero necesitamos mayor comprensión de lo que implica la batalla digital para más eficiencia frente a la criminalización. Necesitamos tener más formación en Nuevas 19 tecnologías y disputa digital comunicacional y contrarrestar el accionar del enemigo 4.El avance de las tendencias neofascistas que aparecen con Bol- sonaro, Kats, el fujimorismo debe ser mejor comprendido y desde el sur puede hacerse ese aporte, incluyendo el análisis de las deudas externas, y la precarización del trabajo como ele- mentos propios de la ofensiva del capital. 5.Desde el Caribe se puede profundizar en diversas formas de ocupación, que van más allá del bloqueo sobre el que hay que investigar más. 6.Impulsar una lucha contra la fragmentación de los movimien- tos, viendo agendas comunes de lucha, contra las trasnaciona- les, la deuda, la crisis ambiental, la militarización y por la solida- ridad entre los pueblos. 7.Continuar sumando más países caribeños en ALBA. Para esto hay que asumir más responsabilidad de las colonias en el Ca- ribe, dar seguimiento a la reflexión sobre el carácter de la Re- publica en Barbados, al tema de la dependencia y a las luchas anticolonialistas en la región. 7.Construir la Patria Grande desde todos nuestros territorios. Lo- grar una articulación política más efectiva con Mesoamerica (Centroamerica) 8.Continuar la Formación de acuerdo a las perspectivas y nece- sidades de cada región. Impulsar Seminarios caribeños de for- mación política. 9.Es prioridad una agenda común de lucha antimperialista y anti- colonial en el Caribe 10.Desde Norteamérica es necesario lograr una forma de articu- lación política con Centroamérica y las luchas del Caribe. Falta una agenda política común. La cuestión migrante pone escena- rios muy complicados. 11.Un desafío general es el fortalecimiento y ampliación de los ca- pítulos nacionales y seguir creciendo como movimientos. 20 21 * Este texto resume algumas considerações e propostas do livro a ser publicado em 2022, intitulado O decênio decisivo. As escolhas pela sobrevivência. São Paulo, Edi- tora Elefante. colapso socioamBienTal ou mudança de civilização. o decênio decisivo* — Luiz Marques — 3. 22 Desde os anos 1950, entramos numa nova época geológi- ca, o Antropoceno, caracterizada pelo fato de que os impactos ambientais causados pela economia globalizada – sobretudo a queima de combustíveis fósseis, a mineração, a poluição indus- trial, a agroquímica e o agronegócio – moldam o sistema Terra de modo mais decisivo do que os fatores naturais. Mortes e sofrimento humano e de outras espécies de- correntes dos impactos dessa fase mais deletéria do capitalismo globalizado são crescentes e já catastróficos. Os cientistas cate- gorizam agora a Terra como um planeta tóxico1. De fato, como faz notar Julian Cribb, “a Terra, e toda a vida nela, estão sendo sa- turadas com produtos químicos feitos pelo homem em um even- to diferente de tudo que ocorreu em todos os quatro bilhões de anos da história do nosso planeta2”. O lixo e seus agentes into- xicantes tornaram-se onipresentes nos organismos, na superfície do planeta, no ar, nos rios e lagos, nos aquíferos e nos oceanos. Nos últimos 70 anos, a produção de polímeros aumentou quase 200 vezes, passando de 2 milhões de toneladas (Mt) em 1950 para 368 Mt em 20193. Segundo Roland Geyer, Jenna Jambeck e Kara Lavender Law4, até 2015 haviam sido produzidas 8,3 bilhões de toneladas (Gt) de plásticos “virgens”, o que gerou 6,3 Gt de lixo plástico, dos quais apenas 9% haviam sido reciclados, 12% haviam sido incinerados e 79% dispersos nos mais diversos ambientes. Plásticos permanecem na natureza por séculos, fragmentando- -se muitas vezes em microplásticos, que conservam todas as suas propriedades tóxicas. Um dos sintomas da ubiquidade do plásti- co no planeta é o fato de que, em 2018, mais de 50% da população 1. Cf. “Scientists categorize Earth as a toxic planet”. Phys.org, 7/II/2017. Veja-se também André Cicolella, Toxique planète. Le scandale invisible des maladies chroniques, Paris: Seuil, 2013. 2. Cf. Julian Cribb, Surviving the 21st Century, Springer 2017. 3. Cf. Chunyan Wang et al., “Critical review of global plastics stock and flow data”. Journal of Industry ecology, 25, 5, 9/IV/2021, pp. 1300 - 1317. 4. Cf. Roland Geyer, Jenna R. Jambeck e de Kara Lavender Law, “Production, use, and fate of all plastics ever made”. Science Advances, 3, 7, 19/VII/2017. Veja-se também PNUMA, Single- -use plastic. A road for sustainability, 2018. 23 mundial já podia ter 11 tipos de microplástico em suas fezes5. O plástico é apenas um exemplo entre milhares de outras fontes de poluição químico-industrial. Em 2015, a Agência Euro- peia de Substâncias Químicas (ECHA) elencava a existência de 144 mil diferentes substâncias químicas industriais registradas ou em fase de registro para uso no mercado. O número dessas subs- tâncias continua crescendo e poluindo as águas, os solos, o ar e os organismos. Apenas para dar um exemplo, a OMS reporta a contaminação do leite materno por 22 pesticidas e substâncias químicas em mais de 70 países, incluindo os EUA, 15 países euro- peus, Brasil, China, Rússia, Índia, Austrália e numerosos outros países asiáticos e africanos6.A atmosfera tornou-se hoje uma arma apontada contra a saúde das sociedades. Em Setembro de 2021, uma declaração de Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, ilustra o que está em jogo: “Por causa da poluição at- mosférica, o simples ato de respirar contribui para 7 milhões de mortes por ano7”. Hoje, 9 entre 10 pessoas no planeta respiram um ar poluído, milhões de humanos e de outros animais morrem prematuramente por causa da queima de biomassa e de combus- tíveis fósseis, da proliferação de pesticidas e demais substâncias tóxicas oriundas da indústria química. 5. Cf. Philipp Schwabl et al., “Assessment of microplastic concentrations in human stool”. Uni- ted European Gastroenterology (UEG), 23/X/2018. 6. Cf. Cribb, cit. (2017). 7.Cf. “New Study Shows Air Pollution Worse Than Scientists Thought”. BBC, 23/IX/2021. 24 1. Aumento da desigualdade global Quem tenta ir além desses números catastróficos, quem tenta encontrar o fundo do problema, não tem dificuldade em encontrar a máquina moedora de florestas e propulsora do co- lapso socioambiental em curso. Trata-se da economia globaliza- da, estruturalmente voltada para atender à demanda dos 10% mais ricos da humanidade e cuja razão de ser é dada pelo binômio crescimento constante e acumulação de capital. O que o capita- lismo globalizado tem a oferecer hoje ao planeta é uma máquina exterminadora de natureza e de produção de desigualdade. A de- sigualdade é não apenas o motor fundamental do agravamento das crises socioambientais acima evocadas, mas é também o principal obstáculo para atacar de modo consequente essas crises. “Redução das desigualdades” é, como se sabe, o 10º dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Desde os anos 1980 estamos caminhando em sentido diametralmente oposto a este objetivo, sobretudo no que se refere à desigualdade socioe- conômica. Os ricos são os grandes responsáveis pela emergência climática e demais crises ambientais. Os 10% mais ricos da huma- nidade (771 milhões de indivíduos) foram responsáveis por 48% dos gases de efeito estufa emitidos em 20198. Do outro lado da balança, os 50% mais pobres da humanidade (3,8 bilhões de indi- víduos) respondem apenas por 12% dessas emissões, ou quatro vezes menos que a média global. Entre 1990 e 2020, as emissões de gases de efeito estufa (GEE) do 1% mais rico aumentaram mais rapidamente do que em qualquer outro grupo, ao passo que as emissões de GEE dos 50% mais pobres aumentaram apenas de 1,2 a 1,6 tonelada de per capita no período. 8. Cf. Lucas Chancel, Climate Change and the Global Inequality of Carbon Emissions, 1990 - 2020. World Inequality Lab, X/2021. 25 2. Aumento da insegurança alimentar e da fome Um dos efeitos mais dramáticos do aumento da desigual- dade é o aumento da insegurança alimentar. Desde o segundo pós-guerra, os movimentos sindicais e, em geral, a sociedade ci- vil organizada foram capazes de conquistas sociais importantes, entre as quais a diminuição global da insegurança alimentar. Mas desde 2015, a fome e a insegurança alimentar voltaram a crescer, inclusive, mais uma vez, nos países ricos. Segundo estimativas da FAO de 2021, a insegurança alimentar global atinge hoje números espantosos9: “A insegurança alimentar moderada ou grave (...) em nível glo- bal tem aumentado lentamente, de 22,6% em 2014 para 26,6% em 2019. Então, em 2020 (...) ela aumentou quase tanto quan- to nos cinco anos anteriores combinados, para 30,4%. Assim, quase uma em cada três pessoas no mundo não tinha acesso à alimentação adequada em 2020 – um aumento de 320 milhões de pessoas em apenas um ano, de 2,05 para 2,37 bilhões. Quase 40% dessas pessoas – 11,9% da população global, ou quase 928 milhões – enfrentaram insegurança alimentar em níveis graves, com quase 148 milhões de pessoas a mais com insegurança ali- mentar grave em 2020 do que em 2019”. O aumento recente da fome no Brasil e a responsabilida- de do agronegócio No Brasil, como se sabe, a desigualdade havia diminuído um pouco até 2014, graças a políticas inclusivas como o Progra- ma Bolsa Família, o crescimento real de 71,5% do salário mínimo e a merenda escolar a 43 milhões de estudantes. Com tais políti- cas, a redução da pobreza extrema chegou a cair 75% entre 2001 e 2014 e o país foi retirado pela FAO do Mapa Mundial da Fome em 2014. Desde 2015, entretanto, essa tendência se inverteu e o Brasil apresenta desde o governo de Michel Temer e, sobretudo, com o governo Bolsonaro, uma das faces mais grotescas desse 9. Cf. FAO, The state of food security and nutrition in the world 2021. Executive Summary. 26 avanço recente da desigualdade. Segundo a Oxfam10: “o patrimônio somado dos bilionários brasileiros chegou a R$ 549 bilhões em 2017, num crescimento de 13% em relação ao ano anterior. Ao mesmo tempo, os 50% mais pobres do país vi- ram sua fatia da riqueza nacional ser reduzida ainda mais, de 2,7% a 2%. (...) O Brasil tem hoje 5 bilionários com patrimônio equivalente ao da metade mais pobre da população”. O agronegócio brasileiro é uma causa direta do aumen- to da fome no país. Ele não produz alimentos, mas commodities, sobretudo para exportação, a preços fixados em dólar e muito influenciados pela especulação financeira. Segundo Paulo Peter- sen, da Articulação Nacional da Agroecologia, “89% de todos os grãos produzidos no país no ano passado [2020] foram de milho e soja”, produtos basicamente destinados à exportação e à ração animal11. Assim, em dezembro de 2020, segundo pesquisa coor- denada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Seguran- ça Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN)12: “Do total de 211,7 milhões de pessoas, 116,8 milhões [55,2%] conviviam com algum grau de insegurança alimentar (leve, moderada ou grave). Destes, 43,4 milhões não contavam com alimentos em quantidade suficiente para atender suas neces- sidades (insegurança alimentar moderada ou grave). Tiveram que conviver e enfrentar a fome, 19 milhões de brasileiros(as)”. A diminuição da fome até 2014, foi, como dito acima, uma conquista dos movimentos sociais e das políticas públicas no Bra- sil e no mundo. É ainda possível retomar essa linha de progresso? Sim, é claro que sim, mas isso só será possível se o agronegócio for substituído pela agricultura genuína, e isso tanto mais porque o aumento impressionante da produção agrícola global nos últi- mos 50 anos está chegando ao seu limite. Ele foi feito a um cus- to social e ecológico altíssimo, com avanço da área agropecuária sobre as florestas e sobre os modos de vida das populações ori- ginárias, uso maciço de agrotóxicos, de fertilizantes industriais e 10. Cf. Oxfam, “Recompensem o trabalho, não a riqueza”, 2018. 11. Cf. Vivian Souza, “Recordes no agronegócio e aumento da fome no Brasil.” G1, 11/VIII/2021. 12. Cf. Rede PENSSAN, “Insegurança alimentar e Covid-19 no Brasil” 2021, p. 35. 27 de novas tecnologias de irrigação e cultivo ecologicamente insus- tentáveis. Os danos causados à biosfera e o aquecimento global, alterando os padrões meteorológicos, cobram agora seu preço. Eles já diminuem a produtividade agrícola per capita e podem di- minuí-la em termos absolutos nos próximos anos. Uma pesquisa conduzida pela NASA sugere que a produção de milho e de trigo pode ser afetada negativamente pela emergência climática já em 203013. Trata-se de um resultado consistente com uma pesquisa de 2017, segundo a qual a emergência climática impactará tam- bém a produção de arroz e soja. Juntos, esses quatro cultivos for- necem dois terços das calorias na alimentação humana global14. 3. Emergência climática e aniquilação da biodiversidade Até agora, falamos de impactos diretos – poluição, pobre- za e insegurança alimentar –, sentidos no dia a dia dos setores mais vulneráveis da sociedade. Mas é preciso falar também das ameaças sistêmicas. Se a poluição adoece e mata, se a desigual- dade desumaniza e atinge as pessoas em sua dignidade e em seus direitos mais elementares, a emergênciaclimática e a aniquilação da biodiversidade representam a mais letal ameaça à habitabili- dade do planeta. O clima planetário está se desestabilizando e a teia da vida, da qual dependemos existencialmente, está sendo rapidamente esgarçada pela economia globalizada. A queima de combustíveis fósseis e o gigantesco rebanho global de ruminantes destinado à alimentação humana vêm lan- çando anualmente na atmosfera, em conjunto, mais de 57 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa (sobretudo dióxido de carbono, metano e óxido nitroso, ou CO2, CH4 e N2O). Por cau- sa dessas emissões, aumentam sempre mais as concentrações atmosféricas desses gases, que absorvem e aprisionam energia 13. Cf. “Falling for corn”. Earth observatory. Nasa, 18/X/2021. Veja-se também o artigo de Jonas Jägermeyr et al., “Climate impacts on global agriculture emerge earlier in new generation of climate and crop models”. Nature Food, 2, 1/XI/2021. 14. Cf. Chuang Zhao et al., “Temperature increase reduces global yields of major crops in four independent estimates”. PNAS, 15/VIII/2017, pp. 9326-9331. 28 calorífica no sistema Terra, causando um crescente desequilíbrio energético no planeta. Esse desequilíbrio é a diferença entre o montante relativamente constante de energia solar incidente em nosso planeta e a dissipação cada vez menor dessa energia para fora do sistema Terra, na forma de ondas longas (radiação infra- vermelha) por causa justamente do crescente excesso desses ga- ses de efeito estufa na atmosfera. O desequilíbrio energético da Terra é, hoje, da ordem de cerca de 1 Watt por metro quadrado (W/m2). Para entender o que esse ganho de energia suplemen- tar significa ele é o equivalente a explodir 4 bombas atômicas da potência da bomba de Hiroshima por segundo desde 1998. Isso é o que o planeta Terra está ganhando em termos de energia tér- mica suplementar a cada segundo. Esse desequilíbrio energético já acumulado está se agravando dia a dia à medida que mais e mais gases de efeito estufa são emitidos pela crescente queima de combustíveis fósseis e pela destruição das florestas. Os impactos da emergência climática são também cada vez mais evidentes, como bem alerta um relatório da Estratégia Internacional das Nações , Unidas para a Redução de Desastres (UNISDR)15: “Entre 1998 e 2017, desastres geofísicos relacionados ao clima mataram 1,3 milhão de pessoas e deixaram 4,4 bilhões de pes- soas feridas, sem casa, deslocadas ou necessitadas de assis- tência de emergência. (...) 91% de todos esses desastres foram causados por inundações, tempestades, secas, ondas de calor e outros eventos meteorológicos extremos”. A expansão térmica das águas e o degelo terrestre está elevando o nível dos oceanos a uma taxa média de 5 mm por ano. Em 2030, essa elevação deve atingir provavelmente entre 13 cm e 21 cm acima do nível de 2000, o que ameaçará a infraestrutura urbana, além de destruir mangues e salinizar deltas e aquíferos. A crescente escassez hídrica resultante desse aquecimento e do uso insustentável da água pela mineração e pelo agronegócio globalizado deve afetar gravemente um terço da humanidade ao longo do próximo decênio, criando até 2030 um déficit de 40% 15. Cf. UNISDR, Economic Losses, Poverty & Disasters, 1998-2017, realizado em conjunto e a partir do banco de dados do Centre for Research on the Epidemiology of Disasters (CRED) da Université Catholique de Louvain, creditado pela OMS. 29 entre oferta e demanda de água16. Dados colhidos desde 2003 pelo satélite GRACE (Gravity Recovery and Climate Experiment) mostram que um terço dos 37 maiores aquíferos do mundo já estão em fase avançada de esgotamento, posto não serem re- gularmente realimentados pela chuva, e 21 deles estão em declí- nio, sobretudo na Índia, China, EUA, vários países da África e da Europa e o aquífero Guarani, no Brasil. Hoje, “quase 5 bilhões de pessoas vivem em áreas onde ameaças à segurança hídrica são prováveis17”. No que se refere à biodiversidade, os serviços prestados pelos ecossistemas estão cada vez mais ameaçados. Uma revisão publicada na revista Science em 2016 mostra que 82% de 94 pro- cessos ecológicos que suportam a vida no planeta (32 em ecos- sistemas terrestres, 31 em ecossistemas marinhos e outros 31 em ecossistemas de água doce), analisados na literatura científica, estão sofrendo impactos das mudanças climáticas18. Isso é, sa- bidamente, apenas o começo. A contração da biomassa viva do planeta e da biodiversidade19 foi avaliada pelo mais abrangen- te relatório sobre o estado atual da biodiversidade, lançado em 2019 pelo IPBES20. Eis uma de suas conclusões centrais21: 16. Cf. Y. Siddiqi, “Empty reservoirs, dry rivers, thirsty cities – and our water reserves are running out”. The Guardian, 27/III/2017. 17. Cf. M. Rodell et al., “Emerging trends in global freshwater availability”. Nature, 557, 31/V/2018. 18. Cf. Brett R. Scheffers et al., “The broad footprint of climate change from genes to biomes to people”. Science, 354, 6313, 11/XI/2016. 19. “Diversidade biológica significa a variabilidade dos organismos vivos de qualquer origem, compreendendo, entre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossiste- mas aquáticos e os complexos ecológicos dos quais eles fazem parte. Isso compreende a diversidade no seio das espécies e entre as espécies, bem como a dos ecossistemas” (Convenção da Diversidade Biológica, 2000, p. 9). 20. IPBES é a Plataforma Intergovernamental de Política Científica sobre a Biodiversidade e os Serviços Ecossistêmicos (IPBES), estabelecida em 2012 na Cidade do Panamá por 94 governos. Contemplando quatro regiões do mundo, o relatório foi construído ao longo de três anos com contribuições de mais de 550 especialistas de mais de cem países, que analisaram mais de 15 mil estudos e relatórios governamentais. Foi aprovado pelos gover- nos de 132 países. Cf. Jeff Tollefson, “Humans are driving one million species to extinction”. Nature, 6/V/2019. 21. Cf. IPBES, “Report of the Plenary of the Intergovernmental Science-Policy Platform on Biodiversity and Ecosystem Services on the work of its seventh session”. Paris, 4 de maio de 2019, p. XVI. <https://ipbes.net/sites/default/files/ipbes_7_10_add.1_en_1.pdf>. 30 “As ações humanas agora ameaçam de extinção global mais espécies do que nunca. Em média cerca de 25% das espécies nos grupos de animais e plantas avaliados estão ameaçadas, sugerindo que cerca de 1 milhão de espécies já correm risco de extinção, muitas ocorrendo em décadas, a menos que se to- mem medidas para reduzir os fatores que impulsionam a perda de biodiversidade. Sem essa ação, haverá uma nova aceleração na taxa global de extinção de espécies, que já é pelo menos dezenas a centenas de vezes maior do que a média nos últimos 10 milhões de anos”. Essas extinções ou ameaças crescentes de extinção de- correm primariamente da extrema antropização dos espaços planetários, várias vezes destacada, e recentemente pelo IPBES: “75% da superfície da Terra [não coberta de gelo] está significati- vamente alterada, 66% da área oceânica está sofrendo impactos crescentes e cumulativos e mais de 85% das áreas úmidas foram perdidas22”. Sempre segundo o IPBES, mais de 500 mil, ou seja, cerca de 9% das 5,9 milhões de espécies terrestres, “não têm mais habitat suficiente para sobrevivência a longo prazo e estão, portanto, condenadas à extinção, muitas delas no horizonte de décadas, a menos que seus habitats sejam restaurados23”. A úl- tima atualização da Lista Vermelha das Espécies Ameaçadas de Extinção, da União Internacional para a Conservação da Nature- za (IUCN versão 2021-2022), corrobora essa avaliação, ao mostrar que 28% das espécies – mais de 38.500 entre as 138.300 avaliadas – correm risco de extinção. Ainda no que se refere à biodiversidade, entre 1970 e 2016, as populações dos vertebrados silvestres (não destinados à alimentação humana) diminuíram em média 68%. Na América La- tinae no Caribe, a diminuição dessas populações foi de 94% nesse mesmo período, uma catástrofe sem paralelo na história huma- na. As sociedades estão vivenciando um evento de aniquilação da fauna silvestre e de extinção em massa de espécies, vitima- das, sobretudo, pela poluição e destruição de seus habitats, pelo 22. Cf. Sandra Díaz, Josef Settele, Eduardo Brondízio (coord.), IPBES, Summary for policymakers (Advance Unedited Version), 6/V/2019. A mesma avaliação foi externada por Sir Robert Watson, “Biodiversity on the brink: We know it is crashing”. In Living Planet Report 2020. Bending the curve of biodiversity loss, p. 12. 23 . Cf. Díaz, Settele, Brondízio, IPBES, Summary for Policymakers, cit., 2019, p. 13. 31 avanço do agronegócio, da mineração e do garimpo sobre as flo- restas, que desaparecem e se degradam em velocidade crescen- te sob a ação conjugada do fogo e das motosserras. Alguns apelidam o Antropoceno de Piroceno (a época do fogo), dada a crescente destrutividade dos incêndios florestais em todas as latitudes do planeta. No Brasil, esses incêndios são causados sobretudo pelo agronegócio. Perdas catastróficas de biodiversidade estão ocorrendo sob nossos olhos. Em 2014, se- gundo o IBGE, o país (considerado ainda o mais exuberante de espécies endêmicas entre os 17 países megadiversos do plane- ta24) contabilizava 3.299 espécies em risco de extinção, ou 19,8% do total de 16.645 espécies avaliadas25. Resultados preliminares mostram que os incêndios de cerca de 40 mil km2, provocados por fazendeiros, apenas no Pantanal e apenas entre Janeiro e Novembro de 2020, causaram a morte imediata por calcinação de 17 milhões de vertebrados26. As mortes sucessivas da fauna por perda de habitat não foram ainda estimadas, mas não devem ser menores. E não apenas dos vertebrados. Também os inver- tebrados e em especial os polinizadores estão sendo atacados, o que pode ter consequências catastróficas. “Nas comunidades tropicais, 94% das plantas são polinizadas por animais27” e todos os vetores de destruição acima mencionados, aos quais se devem acrescentar a poluição atmosférica e o uso crescente de agrotó- xicos pelo agronegócio, estão produzindo um dramático declínio dos polinizadores no Brasil. Agindo sobre esses fatores, as mu- danças climáticas devem causar, ao longo do século, no Brasil, “um declínio de polinizadores agrícolas em aproximadamente 90% dos municípios28”. 24. Cf. Russell A. Mittermeyer, “Primate Diversity and the Tropical Forest Case Studies from Brazil and Madagascar and the Importance of the Megadiversity Countries”. In, E.O. Wilson & F.M. Peter, Biodiversity, 1988, cap. 16; Russel A. Mittermeier, Gil Robles, & C.G. Mit- termeier, Megadiversity: Earth’s Biologically Wealthiest Nations, 1999; “Biodiversity A-Z”. UNEP/WCMC <https://www.biodiversitya-z.org/content/megadiverse-countries.pdf>. 25. Cf. Ana C. Campos, “IBGE: Brasil tinha 3.299 espécies em risco de extinção em 2014”. Agên- cia Brasil, 5/XI/2020. 26. Cf. Daniel Ito, “Pantanal: Estudo aponta morte de 17 milhões de animais em queimadas”. Agência Brasil EBC, 16/IX/2021. 27. Cf. Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES) e Rede Brasi- leira de Interações Planta-Polinizador (REBIPP), Relatório Temático sobre Polinização, Po- linizadores e Produção de Alimentos no Brasil, 2018. 28. Vide nota precedente, p. 35. 32 3. A Amazônia está sob ataque e seu destino se define neste decênio Desde 1970, a Amazônia, o Cerrado e o Pantanal torna- ram-se o alvo da guerra de extermínio das florestas e de seus po- vos deflagrada pelos ditadores. Ao todo, o Brasil perdeu mais de 2 milhões de km2 de sua cobertura vegetal nativa, algo como um quarto de todo seu território, e isso apenas nos últimos 50 anos!! Nenhum país ou território do planeta em nenhum momento da história humana destruiu de modo tão fulminante os sustentácu- los da vida em nosso planeta. Em outras palavras, nenhum país do mundo rivaliza com o Brasil em termos de intensidade (rela- ção escala/tempo) de desmatamento: 1. mais de 800 mil km2 de corte raso da floresta amazônica ou 20% de sua área antes cober- ta por florestas; 2. mais de 1 milhão de km2 de vegetação primária do Cerrado ou cerca de 50% da área desse bioma biologicamente riquíssimo; 3. cerca de 150 mil km2 de floresta da Caatinga, entre 1985 e 2020, o que representa uma contração de 26% da área des- sa floresta em relação a 1985, sacrificada ao avanço do agronegó- cio. A desertificação está agora avançando sobre esse bioma29. Enfim, entre 1985 e 2020 foram suprimidos mais 519.363 hectares (5.193 km2) de vegetação nativa da Mata Atlântica, o que torna sempre maiores os riscos de colapso dos serviços ecossistêmicos – entre os quais a disponibilidade hídrica – de que dependem 70% da população brasileira que vive nesse território30. Um recente inventário das espécies de aves, por exemplo, realizado à luz das últimas versões da Lista Vermelha das Espécies Ameaçadas (IUCN), conclui que na Mata Atlântica31: 29. Cf. MapBiomas (2021), “Desmatamento, queimadas e retração da superfície da água aumentam o risco de desertificação da Caatinga.” <https//mapbiomas.org/desmatamento-queimadas-e-retracao-da-superficie-da-agua- -aumentam-o-risco-desertificacao-da-caatinga> 30. Cf. SOS Mata Atlântica, INPE, Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica. Perío- do 2019-2020. Relatório Técnico. São Paulo, 2021, pp. 8 e 43. 31. Cf. Pedro F. Develey & Benjamin T. Phalan, “Bird Extinctions in Brazil’s Atlantic Forest and How They Can Be Prevented”. Frontiers in Ecology and Evolution, 13/V/2021.. 33 “entre cinco e sete espécies de pássaros foram provavelmente levadas à extinção na natureza neste bioma nas últimas déca- das, além de outras duas espécies que ocorreram em outras partes do Brasil. Essas extinções foram o resultado da perda de habitat em combinação com outras ameaças. Outras nove espécies de aves da Mata Atlântica estão criticamente ameaça- das, além de seis de outras partes do Brasil”. Em particular, a Amazônia está sendo destruída, agora, por ataques conjugados conduzidos pelo governo Bolsonaro e pela casta de parasitas e negacionistas que o apoia, a começar pelos militares, que voltaram a assumir protagonismo ideológi- co na destruição do país. Eis o que mudou essencialmente desde 2019: com os governos civis anteriores, a devastação da flores- ta era considerada um “efeito colateral” dos programas de go- verno. Mas a par dessa destruição, criaram-se ao longo dos anos 1990 uma estrutura mínima de governança para coibir a destrui- ção generalizada, de modo que o ecocídio ocorrido nos anos 1985-2016 decorria basicamente da negligência e da cumplicidade dos governantes com os devastadores. Com Bolsonaro, o ecocí- dio retoma a agenda militar da “segurança nacional” dos anos 1970, vale dizer, que a perda de floresta não é mais um “efeito colateral” a ser minimizado. Ela é agora, novamente, o inimigo a abater e sua destruição é considerada um fato positivo, uma das metas centrais da agenda de Bolsonaro. E qualquer resistência a essa Blitzkrieg por parte das vítimas, que ainda ousam habitar em íntima e não destrutiva interação com as florestas e demais co- berturas vegetais nativas no Brasil, encontra o braço armado do agronegócio, da mineração e do garimpo: seus jagunços e suas polícias militares. A Figura 1 mostra, claramente, a retomada da política de extermínio da floresta amazônica desde 2015. 34 Figura 1 – Desmatamento da Amazônia Legal Brasileira entre 1988 e o período Agosto-Julho de 2021. Fonte: Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), 2021 https://projetocolabora.com.br/ods13/inpe-desmatamento-na-amazonia- -cresceu-22-em-um-ano/ Sob os dois governos de Lula e os dois primeiros anos do mandato de Dilma Rousseff, o desmatamento recua em 2012 (Agosto de 2011 – Julho de 2012) para 4.571 km2. Ainda era, ob- viamente, um nível inaceitável de destruição florestal, mas era omínimo histórico desde 1970. As perspectivas eram boas! A partir de 2012, contudo, com o novo Código Florestal e com a capitu- lação de Dilma Rousseff às pressões do agronegócio, sacramen- tada em sua aliança com Kátia Abreu, o desmatamento volta a crescer. Entre 2013 e 2016, o desmatamento atinge a média de 6.250 km2 por ano. A partir de 2017, ele decola e com Bolsonaro, volta a explodir: 10.129, 10.851 e 13.235 km2, somando 34.215 km2 de perda por corte raso da floresta amazônica, apenas nos três anos de Bolsonaro, uma área maior que a do estado de Alagoas (27.848 km2). A defesa da Amazônia é uma trincheira fundamental da resistência, talvez a mais estrategicamente decisiva de nossos dias, e não apenas na América do Sul, mas no mundo todo. De fato, a maior floresta tropical do mundo constitui um elemento crítico do sistema Terra e suas interações com outros elementos 35 críticos desse sistema são de imensa importância para o equilíbrio do sistema climático global32. A Amazônia é, por assim dizer, o fiel da balança do mundo. Para onde ela se inclinar, o mundo se incli- nará. Em nenhuma outra frente de batalha pela sobrevivência da biosfera e, portanto, das sociedades humanas é tão verdadeira a percepção de que estamos vivendo o decênio decisivo quanto no caso da Amazônia. O desmatamento, os incêndios, a degradação da floresta e o próprio aquecimento global converteram a parte leste e sudeste da floresta amazônica de sumidouro em fonte de emissões de carbono, como recentemente demonstrado por Lu- ciana Gatti e colegas num trabalho de grande impacto, publicado em 202133. Isso significa que a mortalidade das árvores já supe- ra seu crescimento e sua renovação. A floresta está morrendo nessas áreas. Sua sobrevivência está agora por um fio e, desde 2019, esse fio está sendo roído com redobrada voracidade por seus maiores predadores: o agronegócio, o garimpo, as madeirei- ras, as empreiteiras, a mineração, a exploração de gás e petróleo pela Petrobrás, pela Rosneft e outras corporações de combustí- veis fósseis, além dos bancos que irrigam as muitas frentes dessa guerra relâmpago contra a natureza. Uma palavra sobre os bancos é necessária. O agronegó- cio arrasa as florestas, mas o nervo dessa guerra contra a natu- reza é, como em todas as guerras, o setor financeiro. Um relató- rio publicado pela ONG Forests & Finance em 2020 mostra que os bancos brasileiros são, numa palavra, os principais credores do desmatamento. Entre 2013 e Abril de 2020, os bancos finan- ciaram atividades de alta exposição a riscos de desmatamento das florestas tropicais no valor de US$ 249 bilhões. Desse total, o Banco do Brasil financiou US$ 29,9 bilhões, o Bradesco, US$ 7,5 bilhões e o Itaú, US$ 4,4 bilhões. A Figura 2 mostra os 10 bancos e 32. Cf. Timothy M. Lenton et al. “Tipping elements in the Earth's climate system”. PNAS, 105, 12/II/2008; Will Steffen et al., “Trajectories of the Earth System in the Anthropocene”. PNAS, 9/VIII/ 2018. 33. Cf. Luciana V. Gatti et al., “Amazonia as a carbon source linked to deforestation and climate change”. Nature, 595, 14/VII/2021; Scott Denning, “Southeast Amazonia is no longer a carbon sink”. Nature, 595, 15/VII/2021. 36 investidores com a maior exposição financeira em empréstimos e subscrições para empresas do setor de desmatamento no Su- deste Asiático, África e Brasil, entre 2016 e Abril de 2020. Como se vê, a pecuária bovina e a soja no Brasil recebem invariavelmente a parte do leão nesses financiamentos. Figura 2 - Os 10 bancos e investidores com a maior exposição financeira em empréstimos e subscrições para empresas do setor de desmatamento no Sudeste Asiático, África Central e Ocidental e Brasil, entre 2016 e Abril de 2020, em bilhões de dólares, segundo os setores beneficiados: óleo de palma em marrom, celulose em azul, gado em vermelho, soja em amarelo, borracha em cinza e verde em madeira. Fonte: Sue Branford, Thaís Borges e Diego Rebouças, “Brazilian and internatio- nal banks financing global deforestation”. Forests & Finance, 5 de novem- bro de 2020 <https://forestsandfinance.org/>. 37 4. Conclusão Quanto mais amplos os dados e mais consolidado se tor- na o consenso científico sobre a aceleração dos desequilíbrios planetários, mais o capitalismo globalizado se revela uma engre- nagem exterminadora e uma monstruosidade moral. Seu funcio- namento “normal” – e perfeitamente consciente de seus danos – destrói hoje em escala ainda maior que as guerras tecnológicas do século XX. Se pretendem manter viva a esperança de sobre- viver, é chegado o momento, para o sistema político e para as sociedades como um todo, de se guiar pelo exemplo dos jovens, dos povos originários, dos diversos movimentos sociais e, junto com eles, empenhar-se na construção de alternativas sistêmicas ao capitalismo globalizado. A irresponsabilidade dos governantes e sua subserviência às elites econômicas é cada vez mais indubitável. Os “mercados”, as corporações, o setor privado, seus economistas, com sua men- talidade expansionista e seu blá-blá-blá “sustentável”, não são parte da solução; são, ao contrário, a essência do problema. Jef- frey Sachs, um grande economista, é o primeiro a reconhecê-lo34: “Conheço os principais líderes de Wall Street. Não pensam na sociedade. Pensam na riqueza deles. Isso não vai mudar em qualquer momento próximo. (...) A reforma não virá de dentro. Virá quando as pessoas e a sociedade chegarem à conclusão que essa não é uma boa maneira de se organizar a sociedade”. Mudar de civilização é, portanto, preciso. E é preciso, aqui e agora. Não há mais tempo a perder. Isso implica, para as sociedades se insurgir contra o sistema econômico globalizado, representado, sobretudo, e não apenas no Brasil, pela produção de combustíveis fósseis, pelo agronegócio, pela mineração e pelo sistema financeiro que controla os investimentos estratégi- cos dos recursos da sociedade. Contribuir para esta insurgência é o papel de todos os cidadãos da grande República de Gaia que precisamos construir democraticamente sobre os escombros 34. Cf. Entrevista dada a Ricardo Lessa, “Não há futuro com Trump, afirma Jeffrey Sachs”. Valor, 11/IX/2020. 38 dos Estados nacionais. É preciso abrir-se ao ensinamento de Gre- ta Thunberg, por exemplo, quando afirmava na COP24, em 2018, acerca do sistema econômico global: “Se é tão impossível achar soluções no interior deste sistema, talvez devêssemos mudar o próprio sistema.” Mudá-lo em que sentido? Penso que toda mu- dança capaz de assegurar a sobrevivência das sociedades deve se assentar em seis princípios basilares: 1. redução radical e emergencial das diversas desigualdades en- tre os membros da espécie humana, de modo a tornar efetivo o princípio da igualdade de direitos consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948; 2. afirmação dos direitos da natureza, ou seja, extensão da ideia de sujeito de direito às demais espécies, à biosfera e às paisa- gens naturais, o que supõe uma redefinição de caráter filosó- fico e espiritual da posição de nossa espécie no sistema Terra; 3. a economia permanecerá uma mentira e uma máquina mor- tífera, se não se conceber como um subsistema da ecologia. Isso supõe obedecer a cinco preceitos: (a) a máxima sobrieda- de na produção e consumo de bens e de energia; (b) a dimi- nuição radical do consumo dos 10% mais ricos da humanidade, de modo a permitir a satisfação das carências dos 90%; (c) um sistema energético de baixo carbono; (d) uma economia tão circular quanto possível, com uma economia minerária minimi- zada e condicionada à capacidade de reciclagem; (e) um sis- tema alimentar baseado em nutrientes vegetais, produzidos por uma agricultura orgânica, local, variada e respeitosa dos habitats selvagens. Plantar soja no Cerrado e na Amazônia para alimentar porcos, frangos e peixes a milhares de quilômetros em outros continentes é o caminho mais curto e seguro para o colapso socioambiental.Numa palavra: a sobrevivência das so- ciedades depende de sua capacidade de evoluir mantendo baixas taxas de consumo de energia e materiais. 4. ampliação das reservas naturais e um esforço concentrado de restauração dos biomas e da biodiversidade em geral, baseado no diálogo entre a melhor ciência disponível e o saber acumula- do das comunidades tradicionais e dos povos originários; 5. desmontagem da globalização econômica, em favor de uma economia dos territórios, incluída a agricultura urbana. 39 6. superação do axioma retrógrado e militarista de soberania na- cional absoluta, em favor de uma soberania nacional relativa, subordinada a uma governança global dotada de poder efeti- vo, radicalmente democratizada e baseada nos territórios, úni- ca forma de coordenar o combate às principais emergências globais: clima, destruição da biodiversidade, poluição, pande- mias e insalubridade. Esses seis princípios constituem, a meu ver, a moldura de um programa de ação política concreta que incumbirá às socie- dades, coletivamente, formular e desenvolver. Ele não será rea- lizado, obviamente, neste decênio crucial, mas se até 2030 não tivermos avançado significativamente em sua direção, não ha- verá mais tempo e capacidade para evitar o pior, sem excluir a possibilidade crescente de extinção de nossa espécie, a exemplo da extinção das centenas de milhares de outras espécies a que o sistema econômico globalizado está, hoje, condenando. 40 41 ecossocialismo* — Michel Löwy35 — 4. 35. Michael Löwy, brasileiro radicado há anos na França, é diretor de pesquisa em sociologia no Centre nationale de la recherche scientifique, Paris, autor de muitos livros sobre meio ambien- te, e em especial um livro sobre o Pensamento e atualidade de Che Guevara. * 22 Dezembro 2021, publicado no portal A Terra é redonda Tradução do francês por Fernando Lima das Neves 42 1. Capitalismo e crise ecológica A civilização capitalista contemporânea está em crise. A acumulação ilimitada de capital, a mercantilização de tudo, a exploração implacável do trabalho e da natureza e a catástrofe ecológica daí resultante comprometem as bases de um futuro sustentável, pondo em perigo, assim, a própria sobrevivência da espécie humana. A acumulação ilimitada de capital, a mercantilização de tudo, a exploração implacável do trabalho e da natureza e a ca- tástrofe ecológica daí resultante comprometem as bases de um futuro sustentável, pondo em perigo, assim, a própria sobrevi- vência da espécie humana - Michael Löwy O sistema capitalista, uma máquina de crescimento eco- nômico movida por combustíveis fósseis desde a Revolução In- dustrial, é responsável pelas mudanças climáticas e pela mais am- pla crise ecológica do planeta. Sua lógica irracional de expansão e acumulação sem fim leva o planeta à beira do abismo. O “capitalismo verde” – a estratégia de redução do impac- to ambiental ao mesmo tempo em que mantém as instituições econômicas dominantes – oferece uma solução? A inverossimi- lhança de tal cenário de reforma política é ilustrada da maneira mais espantosa pelo fracasso de um quarto de século de confe- rências internacionais – as COP – em lidar com as mudanças cli- máticas. As forças políticas comprometidas com a “economia de mercado” capitalista que criaram o problema não podem ser a fonte da solução. A recente COP 26 (Glasgow, 2021), reunindo governos de todo o planeta, ilustra perfeitamente a impossibilidade de uma solução para a crise dentro dos limites do sistema. Em vez de me- didas concretas nos próximos 5-10 anos – uma condição neces- sária, segundo os cientistas, para evitar um aquecimento global superior a 1,5°C –, obtivemos promessas miríficas de “neutralida- de de carbono” para 2050, ou mesmo (Índia), 2070… No lugar de compromissos precisos e quantificados de suspensão imediata da exploração de novas fontes de energia fóssil (carvão, petró- leo), obtivemos promessas vagas de “redução” de seu consumo. Definitivamente, o defeito fatal do capitalismo verde resi- de no conflito entre a microracionalidade do mercado capitalista, 43 com seu cálculo míope de lucros e perdas, e a macroracionalidade da ação coletiva para o bem comum. A lógica cega do mercado resiste a uma rápida transformação energética para se afastar da dependência dos combustíveis fósseis: ela está em contradição intrínseca com a racionalidade ecológica. Não se trata de acusar os “maus” capitalistas ecocidas, em oposição aos “bons” capita- listas verdes; a culpa é de um sistema ancorado numa concorrên- cia implacável e numa corrida ao lucro no curto prazo que destrói o equilíbrio da natureza. Definitivamente, o defeito fatal do capitalismo verde resi- de no conflito entre a microracionalidade do mercado capitalista, com seu cálculo míope de lucros e perdas, e a macroracionalida- de da ação coletiva para o bem comum - Michael Löwy Uma política ecológica que funcione no quadro das instituições e regras dominantes da “economia de mercado” não conseguirá enfrentar os profundos desafios ambientais com os quais somos confrontados. Os ecologistas que não reconhecem que o “pro- dutivismo” decorre da lógica do lucro estão condenados ao fra- casso – ou, pior ainda, a serem absorvidos pelo sistema. Os exem- plos abundam. A falta de uma posição anticapitalista coerente levou a maioria dos partidos verdes europeus – especialmente na França, Alemanha, Itália e Bélgica – a tornarem-se meros parcei- ros “ecorreformistas” da gestão neoliberal, ou social-liberal, do capitalismo pelos governos. Bem mais do que uma reforma ilusória do sistema, é im- prescindível a emergência de uma civilização social e ecológica baseada numa nova estrutura energética e num conjunto de valores e estilos de vida pós-consumistas: o ecossocialismo. A realização desta visão não será possível sem um planejamento e controle públicos dos “meios de produção”, ou seja, das instala- ções, máquinas e infraestruturas. 2. Ecossocialismo e planejamento ecológico O núcleo do ecossocialismo é o conceito de planejamen- to ecológico democrático, em que a própria população, e não o “mercado”, ou os banqueiros e industriais, ou um Politburo bu- rocrático, que toma as principais decisões em relação à econo- mia. No início da transição para este novo modo de vida, com seu 44 novo modo de produção e consumo, alguns setores da economia devem ser suprimidos (por exemplo, a extração de combustíveis fósseis envolvidos na crise climática) ou reestruturados, enquan- to novos setores são desenvolvidos. Em última análise, tal visão é inconciliável com o controle privado dos meios de produção. Em particular, para que o inves- timento e a inovação tecnológica sirvam o bem comum, a toma- da de decisão deve ser retirada dos bancos e empresas capitalis- tas que dominam atualmente, e colocada em domínio público. Será então a própria sociedade, e não uma pequena oligarquia de proprietários ou uma elite de tecnoburocratas, que decidirá democraticamente que linhas de produção devem ser prioriza- das, e que recursos devem ser investidos na educação, saúde ou cultura. As grandes decisões sobre as prioridades de investimen- to – como o fechamento de todas as centrais elétricas a carvão ou a orientação dos subsídios agrícolas para a produção biológi- ca – serão tomadas por votação popular direta. Outras decisões menos importantes serão tomadas por órgãos eleitos em nível nacional, regional ou local. Ao contrário do que alegam os apologistas do capitalis- mo, o planejamento ecológico democrático proporciona, no fi- nal das contas, mais liberdade, e não menos, por várias razões. Em primeiro lugar, oferece uma liberação das “leis econômicas” reificadas do sistema capitalista que acorrentam os indivíduos ao que Max Weber chamava de uma “gaiola de ferro”. Em segun- do, o ecossocialismo sugere um aumento substancial do tempo livre. O planejamento e a redução do tempo de trabalho são as duas etapas decisivas para aquilo a que Marx chamava“o reino da liberdade”. De fato, um aumento significativo do tempo livre é uma condição para a participação dos trabalhadores na discussão e gestão democrática da economia e da sociedade. Finalmente, o planejamento ecológico democrático representa o exercício por toda uma sociedade de sua liberdade de controlar as decisões que afetam seu destino. Se o ideal democrático não confere po- der de decisão política a uma pequena elite, por que o mesmo princípio não se aplicaria às decisões econômicas? Sob o capitalismo, o valor de uso – o valor de um produto ou serviço para o bem-estar – existe apenas a serviço do valor de troca, ou valor de mercado. Assim, na sociedade capitalista, 45 muitos produtos são socialmente inúteis ou concebidos para se tornarem rapidamente inutilizáveis (“obsolescência programa- da”): o único critério é a maximização do lucro. Em contrapartida, numa economia ecossocialista planejada, o valor de uso seria o único critério de produção de bens e serviços, com consideráveis consequências econômicas, sociais e ecológicas36. O planejamento se concentraria nas grandes decisões eco- nômicas, e não em decisões de pequena escala que pudessem afe- tar restaurantes locais, mercearias, pequenas lojas ou empresas artesanais. É importante notar que tal planejamento é compatível com a autogestão dos trabalhadores de suas unidades de produ- ção. A decisão, por exemplo, de transformar uma fábrica de pro- dução de automóveis numa fábrica de produção de ônibus e de bondes modernos seria tomada pela sociedade em seu conjunto, mas a organização interna e o funcionamento da empresa seriam geridos democraticamente por seus trabalhadores. Muito já se dis- cutiu sobre o caráter “centralizado” ou “descentralizado” do pla- nejamento, mas o mais importante é o controle democrático em todos os níveis – local, regional, nacional, continental ou interna- cional. Por exemplo, os problemas ecológicos planetários, como o aquecimento global, devem ser tratados em escala mundial e, por conseguinte, exigem alguma forma de planejamento democrático mundial. Esta tomada de decisão democrática integral é o oposto do que é geralmente descrito, muitas vezes de forma desdenhosa, como um “planejamento central”, pois as decisões não são toma- das por um “centro” qualquer, mas decididas democraticamente pela população envolvida, na escala apropriada. Um debate democrático e pluralista teria lugar em todos os níveis. Através de partidos, plataformas ou outros movimen- tos políticos, propostas variadas seriam submetidas ao povo, e os delegados seriam eleitos em conformidade. Contudo, a democra- cia representativa deve ser complementada – e corrigida – pela democracia direta, em que as pessoas escolhem – em nível local, nacional e, mais tarde, mundial – entre as grandes opções so- ciais e ecológicas. Os transportes públicos devem ser gratuitos? Os proprietários de automóveis privados devem pagar impostos 36. Joel Kovel, Ennemi de la nature: La fin du capitalisme ou la fin du monde? (New York, Zed Books, 2002), 215. 46 especiais para subsidiar os transportes públicos? A energia solar deve ser subsidiada para competir com a energia fóssil? A semana de trabalho deve ser reduzida para 30 horas, 25 horas ou menos, com a consequente redução da produção? Que garantia existe de que as pessoas tomarão decisões ecologicamente corretas? Nenhuma. O ecossocialismo aposta que as decisões democráticas se tornarão cada vez mais ponde- radas e esclarecidas à medida que a cultura muda e a influência do fetichismo da mercadoria é quebrado. Uma sociedade tão nova não pode ser imaginada sem que a população atinja, pela luta, a autoeducação e a experiência social, um elevado nível de consciência socialista e ecológica. Em todo caso, as alternativas à democracia – o poder do capital financeiro ou uma ditadura eco- lógica de “especialistas” – não são muito mais perigosas? O ecossocialismo aposta que as decisões democráticas se tornarão cada vez mais ponderadas e esclarecidas à medida que a cultura muda e a influência do fetichismo da mercadoria é que- brado - Michael Löwy A transição do progresso capitalista destrutivo para o ecossocialismo é um processo histórico, uma transformação re- volucionária permanente da sociedade, da cultura e das menta- lidades. A realização desta transição conduz não só a um novo modo de produção e a uma sociedade igualitária e democrática, mas também a um modo de vida alternativo, a uma nova civili- zação ecossocialista, para além do reino do dinheiro, para além dos hábitos de consumo artificialmente produzidos pela publici- dade, e para além da produção ilimitada de mercadorias inúteis e/ou nocivas ao meio ambiente. Tal processo de transformação depende do apoio ativo da grande maioria da população a um programa ecossocialista. O fator decisivo no desenvolvimento da consciência socialista e da consciência ecológica é a experiência coletiva de luta, de confrontos locais e parciais à mudança radical da sociedade global como um todo. 3. A falsa questão do decrescimento x desenvolvimento A questão do decrescimento econômico tem dividido os socialistas e os ecologistas. O ecossocialismo, contudo, rejeita o 47 quadro dualista do crescimento contra o decrescimento, do de- senvolvimento contra o anti-desenvolvimento, porque ambas as posições partilham uma concepção puramente quantitativa das forças produtivas. Uma terceira posição soa mais favorável à ta- refa a cumprir: a transformação qualitativa da economia. Um novo paradigma de desenvolvimento implica pôr fim ao flagrante desperdício de recursos sob o capitalismo, ali- mentado pela produção em grande escala de produtos inúteis e nocivos. A indústria de armamento é, certamente, um exemplo dramático disso, porém, de modo mais geral, o principal objetivo de muitos dos “bens” produzidos – com sua obsolescência pro- gramada – é gerar lucros para as grandes empresas. O problema não é o consumo excessivo em abstrato, mas o tipo de consumo que prevalece, baseado no desperdício massivo e na busca os- tentatória e compulsiva de novidades promovidas pela “moda”. Uma nova sociedade orientaria a produção para a satisfação de necessidades autênticas, incluindo água, alimentação, vestuário, habitação e serviços básicos tais como saúde, educação, trans- portes e cultura. É evidente que os países do Sul, onde estas necessidades estão longe de ser satisfeitas, devem perseguir um maior “desen- volvimento” clássico – estradas de ferro, hospitais, sistemas de esgoto e outras infraestruturas. Contudo, mais do que imitarem a forma como os países ricos construíram seus sistemas de pro- dução, estes países podem perseguir o desenvolvimento de uma forma muito mais respeitosa em relação ao ambiente, especial- mente pela rápida introdução de energias renováveis. Enquanto muitos países pobres precisarão aumentar sua produção agrícola para alimentar populações famintas e em pleno crescimento, a solução ecossocialista consiste em promover métodos agroeco- lógicos baseados em unidades familiares, cooperativas ou fazen- das coletivas em grande escala, e não métodos destrutivos do agronegócio industrializado envolvendo aplicação intensiva de pesticidas, produtos químicos e OGMs37 . Ao mesmo tempo, a transformação ecossocialista poria fim ao odioso sistema de endividamento que o Sul enfrenta hoje 37. Via Campesina, uma rede mundial de movimentos camponeses, que há muito tempo defende este tipo de transformação agrícola. Ver: https://viacampesina.org/en/. 48 em dia em razão da exploração de seus recursos pelos países in- dustriais avançados, bem como por países em rápido desenvolvi- mento como a China. Em vez disso, podemos vislumbrar um fluxo importante de assistência técnica e econômica do Norte para o Sul, baseado num sentido profundo de solidariedade e no reco- nhecimento de que os problemas planetários exigem soluções planetárias. Mas como distinguir as necessidades autênticas
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